quarta-feira, 29 de outubro de 2008

fantasmas

És tu naquela esplanada?… Não sei, não, não pode ser… desde que te enterrei que não sonhava contigo, pelo menos acordado. Foi a primeira vez em três anos que tive a sensação de te ver, por instantes tremi, os meus joelhos bateram um no outro à procura de apoio, da minha mão direita caiu o cigarro enquanto tentava dar um golfada nervosa, a cerveja subiu-me quase até à boca, a minha bexiga mexeu-se e pensei que não ia aguentar… Estúpido, como posso ter esquecido, ainda que por segundos, que tu morreste? Puxo outro cigarro e continuo o meu caminho em direcção a casa. Hoje devo sonhar contigo e odeio-te por isso! A minha mãe matou-te e eu amo-a mais a cada dia que passa por isso. Tenho-te gravado em mim, as mesmas feições angulares, o mesmo corpo alto e esguio e se calhar até a mesma facilidade de dissimulação e mentira, afinal sou vendedor… Aos dezasseis anos comecei-me a cortar com um x-acto talvez para canalizar a dor, como disse a psiquiatra, mas também foi para criar diferenças, tinha medo do quão parecido contigo me estava a tornar. O cabelo foi tingido de todas as cores e comia como um abade para ver se engordava. Nada parecia resultar, sempre me compararam contigo. Às vezes percebia a mãe a olhar-me, não como olhava enternecida para a minha irmã enquanto ela fazia um dos seus desenhos, mas sim com um olhar de medo e por vezes mesmo de nojo. Doía-me tanto perceber isso…sabia que ela gostava de mim, que ela gosta de mim, mas via-te a ti mais novo, talvez pela altura do início do vosso namoro e só conseguia sentir dor. Hoje quase não a visito, depois de te matar ficou louca, vive num asilo e quando me vê grita que nem uma louca, ironia, e acusa-me de todo o mal que lhe fizeste. Certos dias chega a acusar-me do próprio mal cometido por ti contra mim. É doloroso demais, tanto para mim como para ela e assim ela vive sozinha sem visitas. A Isabel diz que não aguenta lidar com todo esse passado e presente e fugiu simplesmente. Diz que não nos consegue ver, que se sente sempre a reviver tudo de novo. Dizem que os artistas são muito sensíveis, talvez. A última vez que a vi foi há mais de quatro anos, por acaso num café no centro da cidade e a última vez que falei com ela foi quando tu morreste. Não foi ao teu funeral, se calhar foi a única coerente e verdadeira na sua atitude. Bloqueou o passado, leva uma vida boémia, mas já se ouve falar dela aqui e ali pelas suas pinturas. Quem sofre é a mãe, ou não, desde que ficou chalupa os médicos dizem que perdeu a noção da realidade, mas aposto que lhe ia fazer bem vê-la… Que vida miserável, livra-se de ti, de uma vida a sofrer, mas nem aí tu a conseguiste deixar em paz, tiveste de arranjar maneira de garantir que ela não ia ser feliz. Tiveste de a transformar naquele pudim com esporádicos acessos de raiva. Filho da puta! Também te odeio por isso, assim como te odeio pela merda de vida que levo hoje, pelos pesadelos constantes, pelos medos, pela raiva que carrego e sobretudo pela dificuldade que ainda hoje tenho em relacionar-me com as pessoas. Quando faço sexo oiço sempre o chiar da porta do meu quarto de criança, sinto o teu corpo pesado de cima do meu, o teu cheiro a whisky no ar e acabo invariavelmente a chorar. Tu sim, estás morto, mas continuas bem vivo nas nossas vidas. Só gostava de saber porquê?… Tiro a chave do bolso, abro a porta do prédio e entro. Já se ouvem cá em baixo os gritos do João e da Catarina, devem discutir mais uma vez sobre o que ver na televisão. Abro a porta de casa com a cabeça já a explodir e mando-os para os seus quartos com um grito que faz tremer a casa, eles vão. Helena começa a dizer-me para falar mais baixo, para deixar os miúdos em paz, para parar de ser bruto. Eu não sou bruto, bruto era o meu pai, ela não tem o direito de dizer isso. Puxo a mão atrás e chego-lhe a roupa ao pêlo. Ela começa a berrar, não aguento berros, trazem tantas más recordações. Dou-lhe outra e outra e outra e outra e atiro-a contra a parede até que os seus berros se transformam num abafado murmúrio choroso. Paro. Eu não sou o meu pai, nos meus filhos nunca toquei! A Catarina tem as mamas a começar a crescer.

Sem comentários: