Adriana lembra-se desse dia como se fosse hoje. Tinha acordado com os primeiros raios de sol que espreitavam através das vidraças da janela do seu quarto. Olhou Rafael, seu marido, deitado a seu lado. Reparando como o amava mais a cada dia que passava, apesar das marcas de uma velhice precoce evidentes no seu corpo. A medo, encosta a sua cabeça ao peito de Rafael e escuta. Sorri, ao ouvir o seu coração bater, agradecida a Deus, por lhe conceder mais um dia com o seu amado.
Levanta-se, vestindo o seu roupão de algodão, branco e ajoelha-se diante do toucador, para rezar a sua oração diária de agradecimento e também de prece, na esperança de um milagre, à Virgem Maria.
Ao sair do quarto, a manga do seu roupão fica presa na maçaneta da porta, dando-lhe um puxão. Ao sentir-se puxada para trás, lembra, como, ainda há pouco tempo ela experienciava tantas vezes essa sensação. Foram muitas as manhãs que, quando vinha do banho, apenas usando aquele mesmo roupão, e acordava Rafael para que ele se levantasse, este a puxava de novo para a cama. Enquanto a ia elogiando, dizendo-lhe que nunca vira mulher mais bonita ou cheirosa, abria-lhe o roupão e beijava-lhe o corpo. Percorrendo cada milímetro do mesmo. Quando já ambos desesperavam de desejo, ela aconchegava-o no meio das suas pernas e faziam amor enquanto se beijavam ardentemente. Com a lembrança, ela sente um arrepio percorre-lhe a espinha, talvez de desejo, mas ao olhá-lo, deitado naquele leito, pensa em como sem pensar duas vezes trocava todo esse conhecimento do prazer pela saúde dele.
Tomou banho e vestiu-se, esperava-a um novo dia, um longo dia. Subiu as escadas, acordou e arranjou os seus filhos, Maria José e Félix. Maria José ou Zézinha (como sempre foi mais conhecida) era a mais velha, com oito anos era uma menina muito bem comportada e muito vaidosa. Félix tinha cinco anos e era um menino que tinha tanto de querido como de traquina, dando por vezes cabo da cabeça de toda a gente lá de casa.
Desceram os três de mãos dadas, directos para a cozinha onde tomaram o pequeno-almoço, previamente preparado por Conceição. A criada de confiança, já com alguns anos de serviço na casa. Com o pequeno-almoço tomado, começa mais uma jornada.
Conceição sai de casa com as crianças, cada qual pendurada em seu braço, para percorrer o longo caminho, metade de paralelos e outra metade de terra batida, que os separava da escola primária feminina. Aí, a Zézinha ficaria entregue e ela voltaria para trás e faria a lida da casa, sempre com Félix atrelado.
Adriana preparou o pequeno-almoço, num tabuleiro, para Rafael e levou-lho à cama. Ele já estava acordado e mal a viu surgir na entrada do quarto sorriu-lhe, com vontade, apesar das dores. Ele não tinha acordado pior, graças a Deus. Trocaram algumas palavras carinhosas, nada de mais e ela deixou-o enquanto levava à boca a torrada barrada com manteiga feita há pouco com tanta dedicação.
Desceu para a loja e abriu as portas, dando de caras com fornecedor do pão que carregava dois caixotes enormes. A sua encomenda habitual. Passado pouco tempo, logo entraram, antes de toda a gente, para poderem escolher os pães mais clarinhos, a “ti” Mari Clara e a “ti” Ana Brites. Ambas levaram um pão e um quilo de arroz. A última levou ainda duzentos gramas de rebuçados, pois ia receber a visita dos netos. Perguntaram por Rafael e saíram.
E esta é aquela parte em que eu peço encarecidamente ao senhor ladrão que me roubou quase metade da vida, que me devolva o resto desta história...Não sei do que tive mais pena, se das coisas materiais, que ainda foram algumas, ou se de pequenas coisas como esta,se bem que também ainda foram algumas...